Abaixo, segue o texto do escritor moçambicano Mia Couto a partir do qual fizemos nosso último trabalho. Esse texto é introdução ao livro A África na sala de aula, de Leila Leite Hernandez. Ao lerem-no, prestem atenção às críticas que o autor faz à forma como, até hoje, pensa-se a história da África. Que relação podemos fazer entre esse texto e o vídeo "O perigo de uma história única", de Chimamanda Adichie?
UM RETRATO SEM MOLDURA
Aconteceu num debate, num país europeu. Da assistência, alguém me lançou a seguinte pergunta:
- Para o senhor, o que é ser africano?
Respondi com uma pergunta:
- E para o senhor, o que é ser europeu?
O homem gaguejou. Não sabia responder. Mas o interessante é que, para ele, a questão da definição de uma identidade se coloca naturalmente para os africanos. Nunca para os europeus. E ele nunca tinha colocado a questão ao espelho.
Recordo o episódio porque me parece que ele toca uma questão central: quando se fala de África, de que África estamos falando? Terá o continente africano uma essência facilmente capturável? Haverá uma substância exótica que os caçadores de identidades possam recolher como sendo a alma africana?
Conhecemos a impossibilidade da resposta. Afinal, é a própria pergunta que necessita ser interrogada. São pressupostos que carecem ser abalados. E onde se enxergam essências devemos aprender a ver processos históricos, dinâmicas sociais e culturais em movimento.
A África vive uma tripla condição restritiva: prisioneira de um passado inventado por outros, amarrada a um presente imposto pelo exterior e, ainda, refém de metas construídas por instituições internacionais que comandam a economia.
A esses mal-entendidos somou-se uma outra armadilha: a assimilação da identidade por razões da raça. Alguns africanos morderam essa isca. A afirmação de uma identidade africana sofre, afinal, do mesmo erro básico do racismo branco: acreditar que os africanos são uma coisa simples, uma categoria uniforme, capaz de ser reduzida a uma cor de pele.
Ambos os racismos partilham o mesmo equívoco básico. Ambos se entreajudaram numa ação redutora e simplificadora da enorme diversidade e da complexidade do continente. Ambos sugerem que o “ser” africano não deriva da história, mas da genética. E no lugar da cultura tomou posse a biologia.
Outro lugar-comum nesses exercícios de dar rosto ao continente africano é o peso concedido à tradição. Como se outros povos, nos outros continentes, não tivessem tradições, como se o passado, nesses outros lugares não marcasse o passo do presente. Os africanos tornam-se, assim, facilmente explicáveis. Basta invocar razões antropológicas, étnicas ou etnográficas. Os outros, europeus e americanos, são entidades complexas, reservatório de relações sociais, históricas, econômicas e familiares.
A autora Leila Leite Hernandez escreve: “[...] a África ao sul do Saara, até hoje conhecida como África negra, é identificada por um conjunto de imagens que resulta em um todo indiferenciado, exótico, primitivo, dominado, regido pelo caos e geograficamente impenetrável.” Desfazer permanentemente esses estereótipos é um convite para um olhar aberto, disponível e crítico. São as dinâmicas próprias e os conflitos particulares que definem identidades plurais, complexas e contraditórias, não identidades únicas. O rosto do continente africano só existe em movimento, no conflito entre o retrato e a moldura.
(Adaptado de: COUTO, Mia. Um retrato sem moldura (prefácio). In: HERNANDEZ, Leila Leite. A África na sala de aula: visita à história contemporânea. São Paulo: Selo Negro, 2008.)